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Os Mantras

 

É particularmente interessante discutir a questão dos mantras, considerando que a abordagem dos europeus difere da dos tibetanos. No Tibete, a tradição budista é, com efeito, muito antiga e conseqüentemente todos admitem que a recitação dos mantras traz efeitos benéficos. Os ocidentais, por sua vez, vêem, na maioria das vezes, os mantras apenas como palavras, uma atividade da palavra, e não sabem muito bem se produzem qualquer efeito. Não têm idéia muito clara de como essas palavras podem agir sobre a mente.

O poder da palavra

De uma certa maneira, é verdade que as palavras são apenas sons que se perdem no espaço. Todavia, elas são os vetores de um poder muito grande. Esse poder é evidente mesmo em situações muito comuns. Suponham que uma pessoa diga a outra: "Você é mesmo formidável; o que você faz é extraordinário, etc." Quem é elogiado, sente uma certa alegria, até uma certa exaltação. Se, ao contrário, dirige à mesma pessoa críticas ou observações desagradáveis, ela ficará encolerizada. Alegria e cólera são provocadas pelas palavras: é um sinal claro de seu poder, que é exercido em vários domínios, como se pode constatar facilmente.

Além disso, todo mundo sabe a importância que as palavras desempenham em nossos estudos, dos quais são um veículo indispensável. Um provérbio tibetano salienta muito bem a força da palavra:

As palavras não tem nem pontas, nem corte,
Mas podem ferir o coração de um homem.

Anatomia sutil

Os tantras ensinam que o corpo do ser humano é inervado por uma rede de 72 mil canais sutis (sânsc. nadis), cujas extremidades acredita-se terem a forma de letras, mais particularmente das dezesseis vogais e das trinta consoantes do alfabeto sânscrito. Os ventos (sânsc.prana) que circulam nos canais são influenciados por essas formas, o que explica o fato de os humanos possuírem a faculdade de produzir uma grande variedade de sons, cuja combinação proporciona a riqueza da língua. A estrutura da rede dos canais sutis parece muito menos elaborada dos animais; é por isso que só dispõe de pouquíssimos sons para se comunicarem.

Um sexto elemento

Contudo, a configuração dos canais sutis não basta para conferir a possibilidade de se exprimir de maneira complexa. O corpo e a mente são, com efeito, compostos por cinco elementos: a terra, o fogo, o ar e o espaço. Os humanos possuem, entretanto, um sexto elemento que falta aos animais: o elemento consciência primordial (sânsc. jnana). Por causa desse elemento, o corpo humano é chamado "corpo vajra sêxtuplo". A consciência primordial permite, de um lado, exprimir-se com ajuda de um vocábulo muito amplo e, de outro lado, compreender o sentido do que nos é dito. Ela permite também a reflexão, a informação e o conhecimento.

Quem pode enunciar um mantra?

Os mantras constituem um aspecto da linguagem cuja criação requer capacidades particulares. Um ser ordinário não possui de forma alguma a faculdade de criar um mantra. Tomemos alguém que tenha atingido um nível já bastante superior em relação à humanidade comum: a primeira terra de bodhisattva. Ele possui doze poderes cêntuplos: a capacidade de conhecer os acontecimentos de cem vidas passadas e de cem vidas futuras, de ir a cem campos puros simultaneamente, de escutar simultaneamente o ensinamento de cem buddhas, de permanecer ao mesmo tempo em cem estados meditativos, etc. Entretanto, mesmo um tal ser não pode criar um mantra.

À medida que um bodhisattva percorre a seqüência das dez terras, a potência de seus doze poderes é multiplicada por dez. Chegando à sétima terra, ele fica, além disso, totalmente livre do véu das emoções conflituosas. Mas, a faculdade de compor um mantra ainda lhe é vedada.

Na oitava terra, é produzida uma nova etapa na progressão do bodhisattva que confere à sua mente dez domínios: sobre a duração da vida, sobre os estados de absorção meditativa, etc., e principalmente, sobre o sentido das palavras, tanto que, a partir desse nível, a composição dos mantras torna-se possível.

Enfim, na décima terra, graças à "meditação semelhante ao vajra", o bodhisattva atinge a realização última, o estado de Buddha. Um Buddha que possui a onisciência tem, por definição, a faculdade de criar todas as categorias de mantras.

É apenas no nível das três últimas terras de bodhisattva, as "três terras puras", e do estado de Buddha, que a visão de todos os elementos que compõem o samsara e o nirvana é suficientemente vasta para que as implicações dos sons e das palavras sejam perfeitamente compreendidas, o que autoriza a enunciação de um mantra.

Função dos mantras

Os mantras assim criados veiculam o poder de purificar a mente das faltas e dos véus e tornar evidente sua verdadeira natureza. Portanto, sua função é extremamente benéfica.

Tomemos como exemplo o mantra de Avalokita (Chenrezi), dito "mantra de seis sílabas", Om Mani Peme Hung. Atribui-se a cada uma das sílabas os seguintes poderes:

  • elas fecham a porta dos renascimentos nas seis classes de seres do samsara;
  • elas eliminam as seis emoções conflituosas de base: desejo-apego, raiva-aversão, cegueira, possessividade, ciúme e orgulho;
  • elas permitem realizar as seis sabedorias;
  • elas conduzem à prática perfeita das seis paramitas, etc.

Essas qualidades extraordinárias do mantra de seis sílabas foram descritas pelo próprio Buddha, assim como por Guru Padmasambhava.

Ouça aqui:

 

 

Avalokita, marido da ogra

Outrora, vivia na Índia uma espécie de ogra, cujo apetite era tão feroz, por causa de suas tendências cármicas, que ela nunca ficava saciada, qualquer que fosse a quantidade de alimento que ingerisse. Para tentar aplacar sua fome, matava inúmeros humanos, comendo sua carne e bebendo seu sangue. Avalokita, para desviá-la de um tal comportamento, decidiu encarnar-se na Terra para tornar-se seu marido. Assim, tomou a forma de um ogro, desposou a ogra e viveram juntos em uma perfeita convivência.

Enquanto sua esposa se agitava para procurar comida, Avalokita recitava quase continuamente o mantra Om Mani Peme Hung.

A ogra, que inicialmente não prestava quase atenção nisso, acabou, entretanto, por perguntar-lhe:

— Você passa o tempo todo resmungando palavras incompreensíveis; para que serve isso?

— O que recito me é muito útil — respondeu Avalokita. Graças a isso nunca tenho fome e sinto-me muito bem.

A ogra não entendeu muito bem como algumas sílabas podiam aplacar a fome, mas confiava em seu marido e acreditou que ele tivesse ali a solução para sua bulimia. Ela decidiu imitar seu marido e, rapidamente, ficou livre do apetite que até então a atormentava tanto. Não somente isso, mas exercitando a recitação, ela viu nascer em sua mente sentimentos desconhecidos até então: a compaixão e o amor. Mais tarde ainda, ela realizou a verdade da vacuidade e pôde, assim, engajar-se no caminho do Despertar. Tudo isto graças à simples recitação do mantra, sem mesmo ter tido no início a menor idéia sobre seu significado nem sobre seu alcance espiritual. 

Mesmo se não soubermos meditar, a simples recitação de um mantra proporciona grandes benefícios.

 

Os mantras intraduzíveis

Os mantras foram enunciados pelos buddhas e pelos bodhisattvas com ajuda das palavras e sons da língua sânscrita, considerada como língua ideal sobre a terra, superior a qualquer outra. Como o som desempenha um papel muito importante no uso dos mantras, os tibetanos nunca os traduziram para sua língua, mas os transcreveram graças a um sistema de transliteração que permite conservar o som sânscrito, utilizando o alfabeto tibetano. Assim, eles preservaram o poder espiritual inerente à sonoridade sânscrita e à enunciação original do mantra.

Fácil e benéfico

Encontramo-nos, talvez, em uma situação em que estamos fisicamente ocupados com um trabalho ou com outras atividades que não nos permitem colocar nosso corpo a serviço da prática do dharma, uma situação em que nossa mente, refletindo sobre o que devemos fazer, não tem tempo para meditar. Mas, pelo menos, temos a possibilidade de utilizar nossa palavra para recitar de tempos em tempos o mantra Om Mani Peme Hung. Dessa forma, estaremos fazendo algo de grande valor, cujos efeitos serão muito profundos, para nós mesmos e para os outros.

Diz-se, por exemplo, que quando alguém recita esse mantra e um animal o ouve, este obterá, ultimamente, o estado de Buddha. Quando recitamos o mantra depois de termos soprado as cinzas ou os ossos de um defunto, este será em um primeiro tempo liberado dos sofrimentos dos mundos inferiores, depois progredirá até o Despertar. Esses resultados não requerem meditação da parte daquele que é beneficiado. São os efeitos do que se chama "liberação pela escuta" ou "liberação pela visão". São produzidos pelo simples fato de ouvir ou ver o mantra.

Tenhamos confiança no mantra. Deixemos nosso corpo ocupar-se com seu trabalho e nossa mente exercer sua reflexão de modo adequado. Mas, ao mesmo tempo, recitemos o mantra Om Mani Peme Hung, mesmo sem prestarmos muita atenção nele: nos purificaremos de numerosos véus kármicos e obteremos finalmente o Despertar.

Diz-se ainda que, quando recitamos o mantra de Avalokita, o vento, em contato com nosso corpo, encarrega-se de uma bênção que será transmitida aos animais que tocar em seguida, semeando neles uma semente que, ultimamente, os levará até o Despertar.

Os efeitos dos mantras são muito vastos e muito poderosos. Aqui, iremos limitar-nos a tocar o tema. Aqueles que desejem estudá-lo em detalhe deverão reportar-se aos textos que tratam dos ensinamentos do Buddha ou de Padmasambhava sobre sua natureza e seus benefícios, especialmente aos diversos tantras que expõe as vantagens particulares dos mantras das divindades dos quais eles tratam. Resumindo, os mantras permitem uma grande purificação, assim como uma profunda acumulação de mérito e sabedoria.

Afastar nossas reticências

Certos ocidentais, como dissemos, pensam que os mantras são apenas sons desprovidos de significado, que recitá-los é uma perda de tempo e que é muito melhor meditar. É verdade que os mantras fazem simplesmente uso do som, mas a meditação parece não se servir de nada, nem mesmo desse grau sutil da manifestação que é o som. De certo modo, a meditação deveria suscitar ainda mais dúvidas que os mantras: nela não se faz nada!

As reticências que podem surgir com relação à recitação dos mantras devem-se a dois fatores:

  • de um lado, a ignorância da função e dos benefícios dos mantras tais como foram descritos pelo Buddha;
  • de outro lado, a falta de reflexão sobre a preciosa existência humana, sobre a morte e a impermanência, sobre a lei do karma e sobre a natureza insatisfatória do samsara; daí decorre que, mesmo que se tenha um certo conhecimento do dharma, se é, entretanto, muito preguiçoso e a recitação de um mantra parece um exercício difícil.

Kalu Rinpoche. Ensinamentos Fundamentais do Budismo Tibetano: Budismo Vivo, Budismo Profundo, Budismo Esotérico. Tradução de Célia Gambini, revisão técnica de Antonio Carlos da Ressurreição Xavier. Brasília: Shisil, 1999.

http://kalu.dharmanet.com.br/mantras.htm

Leia também: MANTRAS - OM SIGNIFICADO